O movimento Escola sem Partido nasceu em 2003, a partir de uma inciativa do procurador do estado de São Paulo, Miguel Nagib. Durante anos, suas propostas não encontraram eco até que, em 2014, um encontro com a família Bolsonaro mudou essa realidade.
Nesse ano, o deputado estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro (PSC), pediu para que Miguel escrevesse um anteprojeto de lei. O texto foi, então, apresentado pelo filho do deputado federal Jair Bolsonaro na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro. O líder do movimento fez uma versão municipal que foi apresentada pelo outro irmão da família, Carlos Bolsonaro, na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.
Nagib disponibilizou em seu site os dois anteprojetos e desde então deputados e vereadores, em sua grande maioria ligados a bancadas religiosas, começaram a propor leis em suas respectivas casas legislativas. O projeto já foi aprovado em ao menos três cidades, no estado de Alagoas e tramita em ao menos outros cinco estados e oito capitais.
Diante desse histórico, o debate sobre o Escola sem Partido tem ganhado cada vez mais repercussão. Especialistas em educação consideram as propostas do movimento como absurdas do ponto de vista educativo, inconstitucional do ponto de vista jurídico, e uma forma de censurar professores que seriam proibidos de expressarem seus pontos de vista ou interpretações em sala de aula.
O Centro de Referências em Educação Integral perguntou a especialistas em educação quais as razões pelas quais são contrários ao projeto.
#1. Educação neutra
O artigo segundo do projeto de lei disponível no site do Escola sem Partido define que a “Educação atenderá aos seguintes princípios: neutralidade política, ideológica e religiosa do estado”.
Para o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, Daniel Cara, a neutralidade absoluta é impossível de ser atingida. “Não é possível (ser neutro) porque qualquer tema que se aborde leva um juízo de valor do professor, o que é importante. O que ele não pode fazer é limitar a aula a seu juízo de valor. Determinar a neutralidade política numa lei é um equivoco absoluto”, afirmou.
Ele cita como exemplo a forma de abordar nas aulas de História a redução da jornada de trabalho e a proibição do trabalho infantil. “Em uma aula de História, quando o professor aborda esses temas, mostrando-se favorável, já considero a existência de um juízo de valor”, afirmou.
Daniel defende que o professor não pode ser impedido de apresentar sua visão de mundo, mas mostrar aos estudantes outras referências para que ele entenda os debates e posições existentes em relação a determinado assunto. “O Paulo Freire dizia que os professores precisam apresentar suas leituras de mundo, mas não podem se limitar a elas”, conclui Cara.
#2. Estudantes são folhas em branco
O movimento liderado por Nagib parte do pressuposto de que os estudantes são “folhas em branco” e que professores se aproveitam da audiência cativa dos alunos para incentivar que eles sigam por um determinado caminho ideológico.
“O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, politicas e partidárias”, define o artigo 5º do projeto de lei.
Para especialistas, o primeiro erro é acreditar que o estudante é uma folha em branco incapaz de formar seu juízo sobre o mundo a partir de experiências, referências e saberes que traz consigo.
“Cada estudante chega à escola com sua história, aprendizados, religião, cultura familiar. O que a escola faz é ensinar a refletir, a duvidar, a perguntar, a querer saber mais. Não existe isso do professor fazer ‘cabeça do estudante’. À medida que o estudante lê, pesquisa, escreve e se aprofunda, ele vai dando sentido pra história dele. Escola é o lugar de muitas opiniões. De ouvir a do outro e formar a própria”, afirmou Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM.
Na visão dela, o que não pode acontecer dentro da sala de aula é o professor tentar impor somente sua visão. “É por meio da escuta de todas as opiniões, leituras, excursões, filmes e exposições, que o estudante começa a ter seu próprio repertório, fruto de uma ‘mistura’ entre a escola, a família, a comunidade, a igreja e os amigos. Claro que o professor deve ter sua opinião. Mas o papel dele é mostrar todos os lados e incentivar que todos os pensamentos, todas as cores, estejam ali, dentro da sala de aula. Errado é sair ‘catequizando’ o outro, seja na escola, na igreja ou em uma aldeia”, concluiu Pilar.
Natacha Costa, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz acredita que existe uma assimetria entre estudante e professor, mas que isso não significa que os estudantes são vazios e absorvam tudo o que o docente diz.
“O aluno não é uma folha em branco, pois é um sujeito social, traz uma história, concepções e ideias e isso precisa ser reconhecido. A escola precisa trabalhar para que esse jovem ou essa criança formule hipóteses, interprete o mundo de diferentes maneiras e desenvolva autonomia sobre seu próprio processo educativo. O papel da educação é garantir as experiências para que ele desenvolva uma visão própria sobre o mundo”, afirmou Natacha.
#3. “Meus filhos, minhas regras”
Os defensores do Escola sem Partido defendem que o estudante tem que receber uma educação que esteja de acordo com os princípios da família do aluno. “[A escola] respeitará os direitos dos pais dos alunos a que seus filhos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”, estipula o inciso 5º do artigo 5º do projeto de lei.
O professor de Filosofia da Universidade de São Paulo e ex-ministro da educação, Renato Janine Ribeiro, escreveu um texto nas redes sociais manifestando-se contrariamente a essa ideia.
“Um princípio do Escola sem Partido é que não se poderá ensinar nada que enfrente os valores da família do aluno. Quer dizer, se o pai ou mãe for machista, racista – de forma indireta que seja – a escola não poderá ensinar a Declaração dos Direitos do Homem? A extrema direita o que quer? “, afirmou o ex-ministro da Educação.
Ainda de acordo com Janine, é lamentável que, atualmente, o debate público sobre educação esteja sendo dominado pelo assunto, em um contexto no qual há inúmeras prioridades que não estão sendo visibilizadas.
“O pior da “escola sem partido” é que desvia a atenção das questões realmente educacionais – e educativas! Desvia a atenção de nossas falhas na alfabetização, só para começar. Em 2015 divulguei nossos dados: 22% das crianças não sabem ler direito ao fim do 3º ano (na rede pública), 35% não sabem escrever, 57% fazer as operações matemáticas. Em vez de valorizar a alfabetização e tanta coisa mais, querem criminalizar o ensino”, afirmou Janine.
#4. “Ideologia de gênero”
Nos últimos anos, o Brasil vem fazendo um intenso debate sobre o papel da escola e da educação na problematização das desigualdades entre homens e mulheres, e também no combate à homofobia, à transfobia e à violência contra mulheres, gays, lésbicas, transgêneros e transexuais.
Os defensores do Escola sem Partido também propõem que todos esses debates sejam excluídos do ambiente escolar. Assim como integrantes de bancadas religiosas, tais como Marco Feliciano (PSC-SP), esses debates se inserem dentro do que chamam de “ideologia de gênero” que teria, como objetivo, entre outras coisas, influenciar a orientação sexual e identidade de gênero dos estudantes.
“O poder público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento da sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação de postulados da teoria ou ‘ideologia de gênero’”, prevê o Projeto de Lei 193/2016 do senador Magno Malta.
“A escola é um ambiente privilegiado para que crianças e jovens aprendam conceitos que irão lhes auxiliar a entender o mundo. Uma proposta de discussão de gênero na escola ambiciona incluir gênero como ferramenta que nos ajuda a entender o mundo e tomar uma posição a respeito das diversas violências que produzimos, reproduzimos e sofremos”, afirmou o doutorando em antropologia social da USP, Bernado Fonseca, no artigo Por que ideologia de gênero? Precisamos falar sobre isso.
#5. Censura
Outra proposta do Escola sem Partido é afixar nas escolas do país cartazes com os deveres do professor com, no mínimo, 70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas.
Deveres do professor
I – O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.
II – O Professor não favorecerá, não prejudicará e não constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.
III – O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.
IV – Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.
V – O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
VI – O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.
Para Daniel Cara, essa proposta criará uma espécie de tribunal pedagógico e é uma forma de censura. “Fixar cartazes cria uma espécie de tribunal pedagógico. Se eu não tiver liberdade para expor honestamente, não serei um bom professor. A educação precisa ser honesta e a honestidade não pode ser encurralada por um tribunal pedagógico dos pais”, afirmou.
O professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da rede Professores Contra o Escola Sem Partido, Fernando Penna, acredita que a própria concepção prevista no PL cria um ambiente propício para a perseguição política. Ele questiona, por exemplo, como um professor faria para respeitar absolutamente todas as convicções de todas as famílias.
“Qualquer um que tenha um mínimo de experiência em sala de aula nas escolas brasileiras de hoje sabe que é impossível respeitar essa proibição sem comprometer completamente o processo de ensino-aprendizagem. Como evitar a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais de pais e responsáveis de todos os alunos? As salas de aula recebem grupos completamente heterogêneos de alunos advindas das famílias mais diversas. Evitar contradizer qualquer convicção religiosa e moral iria efetivamente impedir que o professor realizasse discussões importantíssimas e, até mais do que isso, destruiria o caráter educativo de escola”, afirmou Penna que, recentemente, participou de um debate com Miguel Nagib no canal Futura.
“Essa proibição é inconstitucional, basta ler o artigo 205 da nossa Constituição Federal: ‘A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’”, completou o docente.
Fonte: Educação Integral
O filósofo Leandro Karnal em entrevista ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, foi perguntado sobre o Projeto Escola Sem partido. Veja a opinião dele:
O humorista Gregório Duvivier escreveu uma aula de História caso o Projeto Escola Sem Partido venha a se tornar regra. Veja como ficaria:
Quer saber ainda mais sobre esse assunto? Assista o debate entre o idealizador do projeto, o advogado Miguel Nagib, e um de seus principais opositores, o professor Fernando Penna.